quinta-feira, 23 de julho de 2009

âncora

- Eu tenho muita coisa pra te contar.

Assim ele começou a conversa pelo celular.

- Então me conta.

Mordeu o lábio e esperou uma resposta. Elevou a voz:

- Não tô te ouvindo. Eu tô indo almoçar, e o telefone não pega bem no elevador.

Ela não escutou nada e, por alguma razão de que nem ela lembra, não pôde retornar a ligação.

Fazia dias que não conversavam. E o ímpeto de dizer espetava a garganta, de falar tanta coisa, sei lá o quê. A quantidade de idéias e palavras complicava a escolha de como começar, e a correria – corriam como cavalos para se encontrar apenas sobre um colchão de feno – dificultava um pouco mais. A vontade passava, e dava um sono nele. Relinchavam, exaustos.

- Você disse que tinha coisas para me contar.

Ele fingiu que roncava.

Com o tempo, ela reparava, aqui e ali, um jeito no olhar dele. Toda vez que ela via esse olhar, ela se surpreendia, como se fosse pela primeira vez. Dizia-se que era uma besteira, coisa de homem, homem é calado mesmo. Ou era medo de saber?

Aos fins de semana, quando ele fumava - mesmo quando estavam no meio de uma conversa corriqueira sobre trabalho ou falando mal de algum conhecido - parecia que o fogo trazia a ele uma aura sagrada. Entre uma palavra e outra ditas de maneira frívola, um lampejo daquele olhar aparecia, e era como se seu marido se tornasse cerebral e melancólico para, então, retornar a conversa, ainda mais empolgado. E ela procurou se sentir abençoada por ter um marido misterioso como o seu. Não duvidava que suas colegas de escritório fossem felizes. Mas não como ela. Elas também amavam, mas cabia tédio em seus amores. Ela era única - seu marido tinha alma de quem desbrava continentes, apesar de seu corpo escrever relatórios. Uma papada começava a crescer no pescoço dele.

- Eu tenho muita coisa pra te contar.

Ele tinha perdido a conta de quantas vezes tinha dito essa frase em 12 anos.

- Vá primeiro dar o seu mergulho, meu amor. Enquanto isso, me bronzeio. Conversamos depois.

Ele concordou, com a cabeça balançando lenta. Ele estava pesado, e caminhou com a elegância de um paquiderme até dentro d’água. Ela observou o seu andar, seu corpo. Estavam ficando velhos e, mesmo assim, ela sorriu satisfeita. Ele era um homem, calado e bronco, como os de antigamente.

Ele, assim que entrou no mar o suficiente para não dar pé, afundou.

Ela chorou muito, mas sequer se perguntou o que tanto ele queria lhe dizer.

3 comentários:

Alessandra Safra disse...

A-DO-RO ler você. seus dedos não brocham (rs) eles são alucinados e cheios de tesão.

Marfim Cariado disse...

eba!

Anônimo disse...

Maravilhoso texto. Maravilhoso.