- Eu não consigo ouvir nada. – disse Ricardo, bem baixinho, articulando cada uma das sílabas. Isso causava uma pressão divertida aos ouvidos, e ele sentia todos os ossos do seu crânio.
Mesmo assim, não conseguiu escutar o que falava. Sua cabeça estava mergulhada na espuma da banheira, e a torneira aberta ao máximo era cachoeira em tromba d’água.
- Eu não consigo ouvir nada. – dessa vez falou bem alto. Sua voz, distante, pareceu a de um adulto bêbado. Achou graça. Bolhinhas de sabão se formaram ao redor dos lábios e, ao estourar, fizeram cócegas.
Boiava no espaço limitado, deixando apenas o nariz, a boca, e os olhos (fechados) do lado de fora. Era um retiro necessário, fundamental aos seus ouvidos.
Fechou a torneira para a banheira esfriar aos poucos. Sem o som da água contra a água, descobria outros, que ecoavam de todo o apartamento, e até de outros andares do prédio. A pia gotejante. Sua mãe, provavelmente, atrapalhada com os armários da cozinha. O motor do elevador. Gemidos do sétimo... Mas a cada grau que a temperatura diminuía, ficava difícil não pensar também nas coisas ruins, pra lá da porta do banheiro.
Quando já estava um gelo só, voltou a ligar a torneira. O aquecimento amolecia os músculos, relaxando. Pensava no conforto da sua cama. Um soninho... Então, quando ficou quente o suficiente, desligou a torneira e começou tudo de novo.
Cansado da brincadeira, sentou. Com as pontas dos dedos, desenhou coisas na espuma. Um cachorro, uma pipa, mulheres caminhando. Tirou a tampa do ralo, prestando atenção no som cada vez mais forte da água escorrendo – parecia um chupão, como quando queremos mais milk shake quando já não tem. Esvaziou a banheira pela metade. Virou com o bumbum pra cima. Esfregou-se ao fundo escorregadio de cerâmica, cada vez mais rápido, sem entender, com a cabeça afundada no silêncio líquido.
A mãe bateu na porta. A canja estava pronta.
– Só mais um pouquinho.
Levantou com as mãos tremendo, enfiou o roupão branco de capuz. Passou a mão no espelho suado e se olhou. Girou o trinco da porta. A maçaneta o refletia metálico.
À mesa, a mãe beijou-lhe a ponta dos dedos, apertou-os para aquecer, e serviu uma concha da sopa. O bafo subiu do prato ao rosto, fazendo-o suar.
- Faz mal ficar tanto tempo assim no banho. A ponta de seus dedos e o seu peru estão que nem uvas passas.
Deu uma colherada.
- Mãe, amanhã vou mesmo ter que voltar pra escola?
- Lógico. Um dia você ia ter que.
Ele colocou as duas mãos sobre os ouvidos e cantarolou:
- Não tô te ouvindo, não tô te ouvindo.
5 comentários:
que lindo. que doce.
Muito bonito, Gu, demais!! Que jeito incrível de mostrar a subjetividade infantil, isso é raro...
Breja nesse findi que tal? Já estaremos com o boneco do livro, vamos comemorar, vamuuuuus!!!
Avisa o Ricardinho que as aulas foram adiadas para o dia 17. Tem tempo suficiente para ele descobrir novas sensações esfregando o corpinho no fundo da banheira.
Continuo gostando do texto. Achei bem interessante quando você o leu no encontro com o Marcelino.
Deu vontade assim de postar?
É engraçado: um leitor achou doce, outro foi irônico.
Pq será que aquilo que sai do discurso conhecido deixa o outro tão surpreso?
Postar um comentário